As narrativas de Lygia Bojunga Nunes destacam-se no mundo da Literatura Infanto-juvenil pela excelente qualidade literária, visto que cumprem com maestria o papel de ampliar o horizonte do leitor. Seu universo narrativo se revela a partir da própria infância, atingindo temas adultos como as relações de poder e repressão à liberdade de expressão no contexto social. Noutros termos, seus textos não só problematizam temas infantis, mas também temas ligados à condição humana de uma forma universal.
Caracterizada por uma linguagem poética associada a uma visão crítica do mundo a obra de Bojunga conseguiu romper com o “discurso utilitário”, que predominava nas obras desde o surgimento da literatura infantil no século XVIII, apresentando uma literatura que Perrotti denominou de “discurso estético”. Com um humor sutil e inteligente aliado a uma dose generosa de criatividade, a escritora gaúcha encanta e diverte o leitor e, ao mesmo tempo, alerta-o criticamente para uma série de reflexões e atitudes fundamentais à vida (SANDRONI, 1987). Isso pode ser confirmado na novela A bolsa Amarela, como veremos a seguir.
Todas as obras ficcionais de Bojunga são estruturalmente complexas, A Bolsa Amarela não foge à regra, exigindo uma intensa participação do leitor para atualizá-la. A interação texto-leitor da qual se refere Iser (1996) e outros teóricos voltados para a recepção tem início já a partir do próprio título e da capa do livro, uma vez que os mesmos deixam margem para que o leitor faça supostas leituras.
A Bolsa Amarela já conquistou um lugar definitivo no quadro da literatura infantil e juvenil brasileira. Narrada em primeira pessoa a história é tecida a partir das insólitas situações vivenciadas por Raquel, uma menina em desacordo com o mundo, enfrentado conflitos consigo e com a família ao reprimir três grandes vontades: a vontade de crescer, a de ser um garoto e a de se tornar escritora. No trecho abaixo a narradora revela:
[...] Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever. (p. 11)
Raquel é a filha caçula da família, mora com seus pais e os irmãos mais velhos. É uma menina criativa e sensível que vive constantemente questionando sua condição de criança no contexto familiar, no qual se sente solitária e incompreendida pelos seus familiares, como podemos verificar no fragmento abaixo:
Se o pessoal vê as minhas vontades engordando desse jeito e crescendo que nem balão, eles vão rir, aposto. Eles não entendem essas coisas, acham que é infantil, não levam a sério. Eu tenho que achar depressa um lugar pra esconder as três: se tem coisa que eu não quero mais é ver gente grande rindo de mim. (p. 21)
Oprimida pela família, a protagonista começa a escrever ao seus amigos imaginários, revelando a eles suas inquietações, contando-lhes sobre os fatos que vão se sucedendo na sua convivência com a família. Isso pode ser constatado nas ocorrências abaixo citadas:
[...] Um dia fiquei pensando o que eu ia ser mais tarde. Resolvi que ia ser escritora. Então já fui fingindo que era. Só pra treinar. Comecei escrevendo umas cartas:
Prezado André
Ando querendo bater um papo. Mas ninguém ta afim.
Eles dizem que não têm tempo. mas ficam vendo televisão. Queria te contar minha vida. Dá pé?
Um abraço de Raquel.
No outro dia quando eu fui botar o sapato, achei lá dentro a resposta:
Dá.
André.
Parecia até telegrama, que a gente escreve bem curtinho pra não custar muito caro [...]
Percebemos a importância que as cartas assumem nesse contexto dialógico. Enquanto Raquel escreve aos amigos imaginários os seus interlocutores praticamente silenciam. Parece não ser relevante obter uma resposta, pois a consciência produtora de Raquel cria um mundo com suas próprias cartas. Nelas ela afirma a si mesma as vozes com que deseja dialogar.
Um fato ocorrido muda significativamente a vida da pequena Raquel, foi a chegada de um pacote com roupas mandado pela tia Brunilda. Depois que todos da família escolheram as peças com as quais desejavam ficar, sobrou uma bolsa para Raquel, era uma bolsa amarela. A partir daí, a bolsa passou a ser o esconderijo ideal de todo o seu universo imaginário. Tudo cabia lá dentro, inclusive as suas vontades.
[...] No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abri um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zíper; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão escondi a minha vontade de ter nascido garoto (ela estava muito grande, foi um custo pro botão fechar).
Pronto! A arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas. (p. 29-30)
Todo o enredo gira em torno da negação e aventuras vivenciadas por Raquel e seus amigos imaginários que habitam na bolsa amarela. Quer saber mais sobre a história? Que bom! Essa é uma ótima oportunidade para você ler um bom livro.. Que tal?
Ps. Esse texto integra minha Dissertação de Mestrado intitulada DA EXPERIÊNCIA LEITORA À FORMAÇÃO: UM ENCONTRO COM A LITERATURA INFANTIL, apresentada ao Programa de Pós- graduação em letras – Área de concentração : Linguagem e Ensino; Linha de Pesquisa: Literatura e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande, como parte integrante dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras.